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Nota prévia

Este artigo foi escrito por Mariana Martinho, no âmbito do prémio Pepe Camara.

Introdução
Quando dei por mim, a bolinha azul do Google Maps indicava que eu estava no Oceano Atlântico, perto da Mauritânia.
Um ponto azul, a nadar, tal e qual como uma tartaruga dentro de água.

Algo estava mal…
Mas não era o Google Maps. Ele e eu estávamos no sítio certo.
O que seria então?

As tartarugas de Cabo verde

Aterro com um sorriso. Ainda a sorrir, olho em volta da área de chegada e procuro uma plaquinha com o meu nome ou com o nome da organização. Disseram-me que iria estar alguém à minha espera no aeroporto. Mas esse alguém claramente não estava lá.
Liguei. Não atenderam.
-Seria uma organização falsa?
-Não, claro que não! -Mas será que é? -Acho que não… -E se for?
-Pois…
-Se não está aqui ninguém, é porque é falsa…
-Ainda por cima transferi o dinheiro antes de chegar…
Decidi combater o meu debate mental com um espírito positivo! Surpreendi toda esta ansiedade com a ideia de que, o pior que poderia acontecer, era passar dez dias na praia a apanhar sol. Não seria o pior cenário, não senhor.

Meti-me num táxi, comparei todas as informações que o meu eu cauteloso tinha reunido antes da viagem e aqui vou eu! Um senhor taxista impecável! Deixou-me em Santa Maria, na morada do suposto apartamento dos voluntários. Bati à porta. Estaria lá alguém?

Claro que sim! Estavam lá voluntários e uma das responsáveis da associação. Tinha havido apenas uma pequena falha de informação. Ufa!! Que bom, afinal não vou passar dez dias na praia. Sei que parece ironia mas foi mesmo um alívio. Seria um pesadelo para quem não gosta de estar quieto, como eu.

Lá fui eu, o meu bloquinho de notas e a responsável dos voluntários ao escritório da organização nada falsa e pelo contrário, muito verdadeira. Ensinaram-me várias coisas, que vão ser úteis fixar neste relato(rio):
– As tartarugas vêm desovar na praia onde nasceram;
-No geral, a desova e o nascimento das tartarugas acontece durante a noite;
-Só é permitido usar a luz vermelha da lanterna e só quando necessário;
-Cada ninho tem cerca de 80 ovos e demoram quase 2 meses para eclodir;
-A temperatura da areia influencia se nascem machos ou fêmeas;
-O buraco do ninho pode ter até 50 centímetros de profundidade. Quando nascem, as tartarugas vão cavando e subindo até chegar à superfície, exigindo trabalho em equipa. -Quando nascem, seguem a luz da lua que reflete na água.
Fomos dar uma volta pela ilha, fiquei com os pés a ferver, arrefeci com um mergulho na praia e instalei-me no apartamento. Agora sim, cheguei.

A água e as tartarugas

Bem-vindos ao Berçário.

Este é o sítio onde as tartarugas nascem.
Os ninhos que aqui estão foram trazidos de outras praias porque estavam em risco. Por exemplo:
-A tartaruga pode ter ficado assustada com algo e não tapou bem o ninho;
-Pode ter desovado numa praia com cães que aparentemente adoravam escavar ninhos; -O ninho ficou muito perto da água pelo que os ovos podem ser levados pelas ondas; -O ninho situa-se numa praia com muitos turistas.

Este berçário era pequeno, comparativamente aos outros. Pelo que nos esperaria uma noite descansada.
Fiquei com um colega voluntário e distribuímos os turnos.
Ah! Pois, esqueci-me de mencionar um pormenor interessante. Os turnos são de noite! Por isso, a minha função era alternar pequenas sestas com idas ao berçário verificar se tinha nascido alguma tartaruga e levá-la para dentro de água.

Simples, certo? Certo! Mas acima de tudo, incrível!
O primeiro ninho de tartarugas eclodiu e oh! Nem sei como explicar.
Num segundo, a areia dentro da rede estava lisa.
No outro segundo, estavam vinte e tal tartarugas todas em cima umas das outras, cheias de vontade de chegar à água.
Pegámos nelas uma a uma, com muito cuidado e deixámo-las perto das ondas. Não as podemos pôr dentro de água, pois elas têm de caminhar até lá. Mas também não pode ser longe, porque não queremos cansar as barbatanas de uma recém-nascida.
E lá foram. Numa onda. Rumo ao mundo delas.
O entusiasmo foi tanto que nem tirei fotografias, conseguem acreditar?

Voltámos a verificar o berçário e estava tudo muito calmo.
Se as tartarugas estavam a dormir, nós também podíamos dormir e apreciar a noite calma.
O céu estrelado.
O frio da noite misturado com o ar quente africano.
O barulho das ondas.
O BARULHO DE UMA ONDA GIGANTE!

Não! Não era suposto! Levantámo-nos a correr rumo ao berçário. A onda tinha nadado até lá! Mas como!? O berçário estava a uma distância enorme da terra molhada. Tão longe que se fossemos aproveitar um dia de sol diríamos que a distância entre ir dar um mergulho e chegar à toalha seria suficiente para ficarmos secos e novamente cheios de calor. Nem a maré mais cheia nos poderia molhar os dedos dos pés. Aliás, tal nunca antes tinha acontecido. Mas a maré é mesmo assim. Troca-nos as voltas. Por sorte não levou nenhum ninho. Nem nenhuma tartaruga que entretanto poderia ter nascido. Mas a areia estava muito molhada e as tartarugas precisam de quentinho. Alertámos a equipa da associação, deram-nos algumas instruções e eles viriam tentar fazer possível para salvar os ninhos.

Senti-me como se eu própria tivesse levado com uma onda e estivesse no meio daquele turbilhão que nos deixa desamparados na areia. Como é que uma onda, que gentilmente apanha as tartarugas e as empurra com carinho para o oceano pode ser simultaneamente tão perigosa para os ovos das tartarugas?

Aqueles ninhos já tinham estado em risco. Foram transportados para um lugar seguro e uma onda colocou-nos novamente em risco. Não sei se algum ovo eclodiu nos dias seguintes. Mas se aconteceu, essa tartaruga seria sem dúvida uma sobrevivente! Das que voltará daqui a uns anos, a esta praia das ondas calmas com excepção de uma turbulenta.

347 tartaruguinhas

O meu segundo turno e todos a partir daí seriam num outro berçário.
Maior, numa praia onde fazem ações de sensibilização para os turistas, todos os dias.

As minhas tarefas eram:
-Vigiar se nasciam tartarugas;
-Quando nasciam, colocar uma a uma nos baldes com areia lá dentro;
-Caminhar para longe das luzes dos hotéis e, com cuidado, colocar os baldes de lado.
Assim as tartarugas conseguem sair sozinhas;
-Verificar se todas as tartarugas saíram do balde e esperar que elas cheguem à água;
-Observar a onda a levar as tartarugas e ver as cabecinhas delas a vir ao de cima;
-Verificar se as ondas seguintes não trouxeram de volta tartarugas;
-Se trouxeram, voltar a levá-las para perto de água e esperar que elas nadem;
-Voltar ao berçário e ver se nasceram mais;
-Fazer sempre o registo de quantas nasceram e em que ninho;
-Repetir até ao sol nascer.

Existirá uma rotina de trabalho mais perfeita que esta?

255 tartaruguinhas

Neste dia aconteceu uma coisa especialmente bonita.

Uma tartaruga bebé nasceu de manhã. Estava o sol a nascer.
Quando estava a levá-la para a água, encontrei uma turista a passear e perguntou-me se podia assistir.
Aceitei, expliquei as regras e lá coloquei a tartaruga na areia.
Em vez de caminhar em linha recta para a água, a tartaruga fez uma espécie de um S, na areia e depois foi levada pela onda. Ainda vimos a cabecinha dela a vir ao de cima!
Quando me virei para trás, a senhora estava a chorar, a sorrir e a agradecer muito. Explicou-me que estava muito emocionada, porque a tartaruga tinha desenhado a letra do nome da irmã, que tinha um problema de saúde grave e que por isso não podia estar ali com ela.
Acrescentei que aquela tartaruga tinha sido a última a nascer daquele ninho.
A senhora disse que ía ser uma sobrevivente, tal como a irmã.
Fiquei emocionada também e ficámos as duas durante um tempo a ver o sol nascer.

722 tartaruguinhas

Nasceu uma tartaruga albina.
Neste dia participei na ação de sensibilização para turistas.
Verificámos os ninhos que tinham nascido na noite anterior e cavámos com cuidado para ver se ainda tinha tartarugas. Encontrámos algumas sozinhas, a tentar a todo o custo subir ao de cima.
Analisámos os ovos que não eclodiram, se tinham ou não embrião.
Foi tão interessante ganhar este tipo de conhecimento.

Pés quentes, coração quente, amor ardente

Que levar todas estas tartaruguinhas para a água todos os dias era a única coisa em que conseguia pensar e que me fazia sorrir, tal e qual como estar apaixonada? Sem dúvida. Que o meu coração estava feliz e quentinho com toda esta experiência? Lá isso estava. Se os meus pés estavam quentes? Talvez demasiado… Fiz uma queimadura nos pés. Toda a gente anda de chinelos e eu calçada! Sim, eram umas sapatilhas frescas mas que, de um lado, não conseguiam combater o calor que a sola absorvia e do outro lado, o suor dos meus pés friccionava a pele.

Acima de tudo fiquei com o orgulho ferido! Eu, que fiz tantos hikings já, fiz bolhas? Pior, queimadura de fricção!? Não, não. Não era isto que me iria travar.

Fui à clínica:
-Pé direito desinfectado
-Pé esquerdo desinfectado
-Ambos os pés limpos, desinfectados, com pensos e ligaduras
-Nenhum dos pés apto para ir para a areia.

Como assim? – Perguntei eu várias vezes seguidas à médica: -Durante a noite trabalho na praia -Durante o dia durmo na praia.
Como é que eu evito estar em cima da areia?

Dei um prazo de 24 horas aos meus pés e ao meu orgulho para se recomporem e aproveitei para conhecer melhor a ilha. Visitei alguns dos pontos turísticos, tais como:
-Museu do Sal
-Aprendi sobre as condições de vida dos habitantes da ilha
-Observei uns senhores a jogar mancala (parece ser um jogo difícil)
-Vi um senhor a amanhar um peixe em segundos
-Comprei capulanas e encomendei uma túnica a um costureiro que tinha um enorme talento -Fui a Shark Bay
-Mergulhámos nas salinas:

-ai, ai, ai, ai
-O que foi? – perguntavam os meus amigos voluntários
– ai, ai, aiiiii – dizia eu enquanto saltitava – a água está fria??
-Não. Es-tá. Quen-te. Ar-deee. Nos. Pés. Mas O. Que. Ar-de.Cu-ra! Splash!!!
Atirei-me de bruços para a água e fiquei assim, de barriga para baixo e pés fora de água! -Venham, agora a água está ótima!

Que sensação tão boa estar a boiar dentro de água! Pusemos lama na cara, nos braços, os locais diziam que fazia bem à pele e nós acreditámos. Estava tudo bem, tudo, tudo dret!
50 tartarugas (de madeira)

Continuei a dar descanso aos meus pés e passei um dia a pintar placas de madeira em forma de tartaruga. São usadas para escrever o nome das pessoas que adoptam um ninho de tartarugas. Tenho de adoptar um ninho também e colocar numa destas placas o nome da minha família. Espero não me esquecer!

709 tartaruguinhas

Voltei ao trabalho!
Estava lá pelas tartarugas e os meus pés iriam colaborar. Felizmente não pioraram, só demoraram mais tempo a recuperar. Enfim, pés resolvidos, barbatanas para que te quero, dizia eu às tartarugas mal saiam do balde.
O turno dessa noite começou com vários ninhos a nascer. Todos maravilhosos!

3 tartarugas-mãe

O turno de hoje veio quebrar a rotina.
Para que os ninhos cheguem ao berçário, existe uma outra equipa de voluntários que faz esse trabalho.
Fica de vigia a noite toda, vai controlando a chegada das tartarugas mães às praias e verifica os ninhos deixados por elas. Se estiverem seguros, deixam-nos no sítio. Se estiverem em perigo, levam para o berçário.
Juntei-me a uma dessas equipas e fui para um novo terreno de ação!
O campo deles era numa praia deserta. Os voluntários tinham controlo de consumo de água e os mantimentos eram levados no jipe.

O meu entusiasmo era tanto! Nem queria acreditar na possibilidade de ver uma tartaruga-mae. Daquelas grandes e não das pequeninas que eu todas as noites pegava com a minha mão e levava para a água.
Jantámos, fizémos uns jogos divertidos, dividimo-nos em equipas e cada par foi deixado num local estratégico de vigia.

A luz da lua não estava muito forte. Cada vez que eu tropeçava numa pedra, perguntava-me se as tartarugas iriam conseguir seguir bem a luz da lua naquela escuridão. Uma parvoíce de pensamento, eu sei, mas tropecei muitas vezes.

Tínhamos de estar com os ouvidos atentos a cães, carros que não fossem os de patrulha, grupos de turistas e com os olhos prontos a avistar uma tartaruga.

Andámos, andámos, não sei quantos quilómetros andei ao todo, mas andámos muito.
De repente avistamos um grupo de pessoas com um guia, que transportava a luz vermelha. Estavam atrás de uma tartaruga a desovar. Juntámo-nos a eles e mal a tartaruga terminou de pôr os ovos e começou a tapar o buraco com as barbatanas, tentámos medir a carapaça e marcar a localização do ninho.
Foi um momento estranho não vou mentir. A emoção de ver uma tartaruga-mãe diminuiu logo ao vê-la junto a um grupo de humanos. Parecia que não estava a bater certo. Só pensava no contrário. Se fosse um humano a desovar, no momento difícil do parto, teria um grupo de tartarugas a assistir? Que absurdo!

Pedimos para não ligarem os telemóveis porque a luz branca poderia assustar a tartaruga.
Algumas pessoas cumpriram, outras não.
Pedimos para estarem em silêncio. Algumas pessoas cumpriram, outras não.
Pedimos para se moverem devagar porque estava a chegar uma outra tartaruga. Algumas pessoas cumpriram, outras não.

Uma parte de mim queria expulsar os turistas.
Por outro lado, aquelas pessoas, tal como eu, assistiram a um momento único de aprendizagem sobre a vida selvagem. Algo que nos faz conhecer melhor as espécies e saber como as proteger. Algumas das pessoas até nos fizeram perguntas muito interessantes e estavam genuinamente interessadas em apoiar o nosso trabalho. Mas debatia-me com o facto de eu também ser uma turista. Naquele momento estava a ser voluntária. Mas se visitasse Cabo Verde e me dissessem que dava para ir ver tartarugas a desovar eu seria a primeira pessoa a inscrever-me! Seguiria as instruções do guia sim e se era para estar em silêncio assim o faria. Estava a fulminar com os olhos quem queria filmar e acendia a luz do telemóvel e se esquecia do flash! Mas pensava que se calhar, estavam a filmar para poder mostrar a pessoas que infelizmente não podem vir ver com os próprios olhos. Se bem que hoje em dia já há Youtube e programas de televisão especializados. Uff não sei que escrever. Tive um debate de consciência.

A noite avançou, os turistas foram embora e continuamos a patrulhar a praia. Falei com a minha colega sobre tudo isto. Acabámos por debater tópicos muito interessantes. Falar com quem partilha as mesmas preocupações faz bem. Fiquei mais leve, mais atenta e….

Mais todas as emoções positivas e mais algumas! Uma tartaruga a chegar do mar, mesmo à nossa frente! Só nós as duas e ela! Sentámo-nos muito devagar na areia.
A tartaruga, com esforço, deixava a terra molhada para trás e procurava o sítio que ela achava indicado para pôr os seus ovinhos. Só se ouvia o som das barbatanas a rastejarem pela areia.
Enquanto ela cavava um buraco com as barbatanas que fazem uma espécie de pá para tirar a areia muito lentamente, as lágrimas corriam-me pela cara, também lentamente. Que momento tão puro.
De repente sinto a minha colega a dar-me cotoveladas, lentamente e diz-me quase em surdina para olhar para a direita. Viro a cara, muito lentamente. Vinha lá outra tartaruga!!
Saiu da água e passou a uns 50 centímetros de onde estávamos. Eu nem respirava! A certo momento até fechei os olhos para ela passar à vontade, não fosse ela sentir-se observada e fugir dali para fora. Continuavamos em modo estátuas. Senti uma sorte enorme, tinha duas tartarugas ao meu lado. Estava a ser um momento perfeito mas a natureza quis que ainda fosse mais perfeito e enviou uma terceira tartaruga! Ficámos no meio de um triângulo de tartarugas! A terceira lá chegou ao sítio que queria e começou a cavar o buraco. De repente começou a chover ovos! Sim! Fomos atingidas por ovos de tartaruga! Porque a terceira tartaruga começou a cavar num sítio que já tinha um ninho!!! E agora?! Ela ia destruir aquele ninho! Estava eu em pânico a pensar no que poderíamos fazer sem nos mexermos e assustarmos 3 tartarugas. Qual a minha surpresa quando a tartaruga de repente pára de cavar! A minha colega comenta em surdina que as tartarugas conseguem perceber que estão lá ovos e páram para procurar outro lugar! Quão incrível é isto?! Um suposto ser irracional quase a parir decidiu parar de cavar para não perturbar o ninho que outra tartaruga tinha deixado. As minhas lágrimas continuavam descontroladas.
Estivemos ali paradas 1 hora e meia. Enquanto a terceira tartaruga cavava, a primeira e a segunda já estavam despachadas. Como não nos podíamos levantar para não perturbar nenhuma delas, essas duas não podemos medir nem ver se já tinham chip. Por isso limitámo-nos a vê-las por os ovos, a tapar os buracos e a irem lentamente embora, com a esperança de voltarem a encontrar os seus filhotes dentro de água, algures pelo oceano. Quando a terceira tartaruga começou a tapar os seus ovos, aproximámo-nos dela com muito cuidado para não a assustar. enquanto ela elegantemente dançava de um lado para o outro para arrastar a areia, conseguimos medir a carapaça e verificar que não tinha chip. O chip é últi para saber mais sobre a vida das tartarugas. Quando uma tartaruga volta à praia e já tem um chip, significa que andou vários meses pelo oceano e sobreviveu e vem pôr ovos pelo menos pela segunda vez. Colocámos um chip e a minha colega perguntou-me que nome eu queria dar à tartaruga.
-Mizé, o nome da minha mãe.
E assim ficou. Uma tartaruga com 68cm de largura de carapaça e com o nome da minha mãe.

Afastámo-nos e lá foi ela, uma pedra a rastejar para dentro de água e a desaparecer ao luar. Verificámos se os três ninhos estavam bem tapados, e colocámos areia sobre o ninho que tinha ficado a descoberto.
Precisei de uns minutos para respirar fundo e guardar na memória este momento.

Durante a noite encontrámos mais algumas tartarugas e tive a honra de baptizar mais duas! Dormimos umas horinhas e quando o dia estava a nascer, fomos acordados com mais uma tartaruga a pôr os ovos perto do sítio onde estávamos. Com a luz do dia deu para ver ao pormenor todo o processo e contemplar mais uma vez o quão bonita é a natureza.

354 tartaruguinhas

Estou de volta ao berçário. Tudo me parece ainda mais incrível agora que vi com os meus olhos o que acontece antes de os ovinhos eclodirem.

2 caranguejos e -2 tartaruguinhas

Mais um turno.
Achava que nada teria a capacidade de me fazer parar de sorrir.
Até que tivemos uma visita indesejada: um caranguejo.
A rede à volta do berçário servia não só para impedir as tartaruguinhas de saírem do berçário e se dirigirem para a luz do hotel em vez da luz da lua, mas também para impedir cães de entrarem. E de certa forma, também travava um pouco os caranguejos.
Aliás, tínhamos uns baldes com armadilhas para caranguejos.
Mas não foi suficiente…
Estou eu a iniciar a minha ronda a meio da noite, sem luz e vejo algo a andar demasiado depressa para ser uma tartaruga. Corri dentro do possível, a tentar não pisar ninhos nem tropeçar. Era um caranguejo! Mas não ia só… Levava com ele uma tartaruguinha bebé. E mal consegui chegar ao pé dele, ele enfiou-se na areia.

Fiquei furiosa. Bem sei que o ciclo da vida tem destas coisas.
Entre tubarões dentro de água, gaivotas à tona da água e cães em terra, as tartarugas bebés já têm predadores suficientes, pensava eu. Ainda por cima sou do signo caranguejo!

Não consegui fazer nenhuma sesta nessa noite. Estava inquieta e ao mínimo barulho ia à caça dos caranguejos. Não os podíamos matar, claro, mas ía com o balde, apanhava-os com cuidado e largava-os na areia longe do berçário. Não ía ser eu que poderia alterar o curso da natureza mas assim era uma forma gentil de pedir que fossem procurar alimento noutro lado.

Alguns ninhos eclodiram e fomos levando as tartarugas para dentro de água.
O sol nasceu e fiquei sozinha a tomar conta do berçário.
Quando fui fazer a última ronda, encontrei uma tartaruguinha morta na areia. Aparentemente tinha nascido há alguns minutos e não aguentou o calor. Ou morreu à nascença. Foram várias as teorias que os meus colegas davam. Mas nada me consolava. Ela morreu durante o meu turno. Aliás, duas.

Senti que tudo o que tinha visto e aprendido estava a vir ao de cima.
-Porque é que a luz dos hotéis é mais forte que a da lua e as tartarugas a seguem e acabam por morrer sem chegar à água?
-Porque é que algumas pessoas, qualquer que fosse a letra do seu nome, tinham deficiências e outras não?
-Porque é que eu tinha a sorte de ser uma pessoa saudável e ter a oportunidade de ver com os meus olhos tudo o que estava a viver?
-Como é que neste paraíso encontrava tantos plásticos e lixo nas praias?
-Como é que as tartarugas sobreviviam a ondas, barcos, predadores, humanos, punham ovos e os bebés conseguiam nascer e crescer até adultas, enfrentando tantos perigos?
-Como é que iriam sobreviver num oceano sujo?
-Como é que nós iremos sobreviver numa terra suja?
Era isso que estava mal, em todo o lado, em todos os pontinhos azuis onde quer que estivesse. Aqui ou ali, havia lixo. Sim, foi isso que me fez procurar uma causa, um projeto de voluntariado. Esse foi o meu propósito, o que me levou a fazer esta viagem. Mas não teria sido melhor se tivesse feito esta viagem apenas motivada pela curiosidade de conhecer uma espécie de tartarugas em vez de vir com a ideia de as salvar por causa do lixo que produzimos. Quantas emissões de carbono tinha provocado a voar para Cabo Verde em vez de ajudar outra espécie em Portugal?

Fui para casa de rastos. Senti que não devia estar ali. Que tinha falhado a minha missão. Desabafei com uma voluntária sueca que tinha cerca de 50 anos e que apontava tudo o que queria no seu caderno ao longo do ano e depois no final do ano queimava o caderno. Memorizei este pormenor porque se fizesse isso, não teria o meu caderno que tanto me ajudou a escrever este relato agora. Ela tinha deixado toda uma carreira para se dedicar a fazer voluntariado pelo mundo fora. Disse-me que aquelas duas tartarugas tinham morrido sim. Mas que muitas outras iam sobreviver graças ao nosso trabalho. Falámos sobre muita coisa. Ela mais racional, eu mais emocional. Tinha uma pessoa estranha a consolar-me e só isso já era razão para me sentir um pouco melhor. Senti que não era a única com aquelas dúvidas todas.
Acalmei-me e respirei fundo. Estava rodeada de tartarugas e de pessoas boas. Pelo menos essa última, quero acreditar, não é uma espécie em vias de extinção.

Até breve, tartarugas
No meu último dia fui dizer adeus ao berçário. Claro que não podia ser um dia normal, sem peripécias e caí de bicicleta em câmara lenta. Fiz uma ferida no joelho que deixou cicatriz. Mas o que mais me marcou foi a gargalhada de um senhor que me viu cair e que, quando olhei, reparei que era o taxista que nos tinha levado a conhecer a ilha! Rimos os dois, que queda tão parva.

Uma colega voluntária fez-me trancinhas no cabelo que aguentaram duas semanas. Lá apanhei o avião e o pontinho azul deixou de estar naquela ilha paradisíaca das tartarugas.
Pedi à Mãe Natureza que levasse as tartarugas a bom porto, figurativamente.
Mas naquele pontinho azul, agora situado em Lisboa, também podia fazer a diferença.
Já tinha hábitos sustentáveis, agora ainda teria mais!
Até ao momento está a correr bem e vou continuar a esforçar-me para que corra ainda melhor! Pelas tartarugas e até pelos caranguejos, pelas gaivotas, pelos tubarões e, por nós.


– Mariana Martinho

Imagens do Pixabay

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