pt-pt +351 21 845 26 89 / 90 geral@papa-leguas.com
+351 21 845 26 89 / 90 geral@papa-leguas.com

Gigantes de Pedra

Homepage > Histórias de Viajantes > Gigantes de Pedra

Nota prévia

Este artigo foi escrito por José Pedro Correira F. Boléo-Tomé, no âmbito do prémio Pepe Camara.

Há um reino de pedra e de silêncio que se esconde acima da linha dos bosques, longe dos
banhistas do lago, das varandas dos chalets enfeitadas com flores vermelhas onde se bebem
cervejas geladas, longe dos turistas que procuram emoções fortes no fundo dos rios turbulentos
e dos motards que aceleram BMW de alta cilindrada nos apertados passos de montanha. Este
mundo é de rocha e de nuvens, de imprevisíveis nuances de cor e de clima, de altitudes
esquecidas onde apenas habitam seres mágicos, ora amistosos espreitando detrás de rochedos
megalíticos, ora vigiando-nos ameaçadores, prontos a esmagarem-nos ao primeiro passo em
falso.

O Vale dos Sete Lagos, no coração do Parque Nacional Triglav, Eslovénia, é um longo corredor
glaciar em forma de crescente que se dirige dos planaltos acima do lago Bohinj para norte, para
os altos montes que constituem os contrafortes do Triglav. Saímos bem cedo da nossa Koca,
misto de refúgio e simples choupana de montanha no fundo de uma depressão verde, onde jaz
um lago redondo infestado de algas. Entramos nos bosques e num estranho mundo, em que as
flores silvestres atingem a altura do nosso peito, preenchendo clareiras na floresta como
resquícios pré-históricos. O caminho desce até ao lago Negro, o primeiro dos sete, metido no
fundo de um declive de rocha à nossa esquerda. As águas são verde-escuro, não sopra uma brisa
e a roupa cola-se-me ao corpo, empapada.

Dali subimos sempre devagar, uma longa ascensão que nos deixará hoje no ponto mais alto da
viagem, acima dos 2000 metros. O refúgio onde almoçamos fica acima do Lago Duplo, uma
animada cabana de montanha cheia de caminhantes onde temos oportunidade de uma refeição
a sério – o trigo sarraceno que comi sabia a terra, mas o apfelstrudel podia ter vindo
directamente de um café vienense.

A subida para o passo de Prehodavci faz-se entre imponentes sentinelas rochosas e campos de
lapiás, placas calcárias que se fendem e dissolvem formando lâminas como cristas de dragão;
nos intervalos a vegetação brota como em canteiros. A paisagem torna-se toda branca, em
matizes de ocre e rosa, cortada por flutuantes manchas das sombras das nuvens. Apetece falar
baixo, o terreno é solene e o ar está pesado da trovoada que não vem. Ao alto, sobre um estreito
trilho um helicóptero ronda e parece recolher alguém para quem o trekking acabou. A montanha
é dura e os acidentes não são raros por aqui.

Subimos para as nuvens. O refúgio está numa crista, desabrigado, como uma caixa que algum
gigante pousou ali em equilíbrio, sobre uma depressão com pequenos lagos carregados de
minerais e cores profundas – os “olhos da montanha”, chamam-lhes. Deixem-me contar-vos
como é a vida neste ermo a 2071 metros, muito longe de qualquer povoado ou estrada. Antes
do refúgio, 50m abaixo, uma seta pintada na rocha indica “wc”, uma precária cabana com uma
vista incrível para o vale do outro lado. O interior, descrevem-me, é aterrador para os sentidos.
Não vou lá. Acima, a pequena casa de madeira de telhados inclinados está rodeada de uma
estreita plataforma que lhe serve de varanda e esplanada; para oeste, a montanha cai a pique
em dois fundos vales verdes por onde descerei amanhã; para norte e leste, penhascos incríveis
com nomes difíceis. Lá dentro todo o espaço é aproveitado – no piso térreo a sala acolhedora
de mesas corridas, com as paredes revestidas com a frase “por favor, leve o seu lixo” em dezenas
de línguas e dialectos, e a mini-cozinha onde os guardiões, muito jovens, preparam o jantar. Em
cima, todo o sótão é um corredor de beliches apertados onde já se atarefam caminhantes com
as suas mochilas. Várias famílias, crianças, algumas pequenas, como se fosse o parque infantil
na Eslovénia esta rudeza perdida. Cá fora, partilho queijo e frutos secos com um holandês
sorridente de cabelos encaracolados. Vem com a mulher e os filhos de 9 e 14 anos – esta manhã
escalaram o Triglav, sem problema, os miúdos com cabos, “por segurança”.

Anoitece devagar, já depois do jantar, como se a luz escoasse aos poucos e deixasse no seu lugar
uma escuridão espessa, como um vapor, sem som e sem vento. Não é hostil este escuro,
envolve-nos como veludo ocultando os dentes pontiagudos dos seres de pedra que nos rodeiam,
e as pequenas luzes do refúgio brilham amarelas e quentes neste mar anil. Ala, a camarata
adormece exausta e é tempo de encontrar o meu beliche sem tropeçar nas mochilas e antes
que adormeçam os roncadores de serviço.


– José Pedro Correira F. Boléo-Tomé

Imagem do Pixabay

Leave a Reply

GDPR