Nota prévia
Este artigo foi escrito por Gonçalo Bruno Borges Rodrigues Mesquita de Carvalho, no âmbito do prémio Pepe Camara.
O Uganda, é a ‘Pérola da África’ disse Winston Churchill que visitou o país em 1908, no seu livro “My African Journey “(1908). Passei as ultimas semanas de 2023 e a primeira de 2024 neste país africano. Propus-me a viajar devagar, a observar e sobretudo a escutar e a aprender. Perceber o outro é um privilégio. Estas são as minhas reflexões que partilho com um sorriso.
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´Como é assistir ao vivo a um jogo da Champions League? ` – pergunta-me o Hannington. ´Como é ouvir aquele hino?`.
O Hannington tem 32 anos, mede 1,90cm, e vive em Kampala, a capital do Uganda. Guiou-me daí até ao noroeste do país, ora por estradas alcatroadas, ora por buracos de terra e de lama que nos engoliam o carro por momentos e por onde, magicamente, conseguíamos subir. Quando nos preparávamos para mais um troço de 6 horas, disse-me `Isto é a famosa massagem africana. É demorada e é grátis!´ Tem os olhos meigos e curiosos e gosta de me fazer perguntas sobre assuntos que não sabia sequer que pudessem causar duvidas.
´Podemos falar espanhol? No Uganda, se queres fazer carreira e dinheiro, ou acabas no governo, ou no exército, ou numa agencia de turismo. O espanhol dá-me mais hipóteses de me diferenciar. Como é que mergulhar em água salgada? O sal arde na pele? `
O Uganda é um dos países dos grandes lagos africanos. Não tem contacto com o oceano. O nome dos lagos denuncia a presença da coroa britânica no país até 1962, ano da independência ugandesa. Passarei por todos, mais tarde, quando descer a fronteira do Uganda com a República Democrática do Congo antes de regressar à capital. Lago Albert, Lago George e o Lago Victória, o segundo maior lago do mundo, o maior do continente africano. As lembranças de colonização. A imensidão do lago Victória surpreende. Não fosse a ausência de ondas e facilmente acreditaria que estaria numa praia do oceano Atlântico ou do mar Mediterrânico. Ao longe vejo pequenas ilhas e uma prova de canoagem. O lago serve de praia no Verão às classes mais altas do país em troca de pagamento para aceder a areia. Não consigo perceber o sectarismo de uma praia privada, seja em que condições. O acesso ao que já existia no universo devia ser, por conceito, universal. A sua imensidão é tal que faz fronteiras com outros dois países – Ruanda e Tanzânia. Existem postos fronteiriços a meio do lago com guardas de cada um dos países, fiscalizando documentação e autorizações em plena água. No entanto, aqui, ao contrario do ocidente não se pretende evitar ou controlar vagas de emigração ilegal. A única preocupação passa por evitar que os pescadores de cada país respeitem territorialmente a flora e a fauna aquática de cada nação e pesquem exclusivamente nas respectivas águas. Por toda a capital, pela cidade de Entebbe, ou nas zonas rurais ugandesas adjacentes ao Lago Victória constato que se vende o pescado mais procurado –
a perca do Nilo – uma das maiores espécies invasoras de todo o continente. Comida simples, saborosa e local. Para um país que não é rodeado por oceano ou por mar, o Uganda não deixa de ter uma forte industria pesqueira. Comerei de tudo, peixe seco de perca, guisado de perca, douradinhos de perca, sabendo que a marca Capitão Iglo ainda não chegou a estas águas.
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O Uganda é verde. Muito verde. Os prados são verdes, as montanhas são verdes. O cultivo de chá, café e de bananas dão ao país, para além de preciosas exportações, essa tonalidade constante, abundante e intocável que nos remete para filmes e livros de desenhos animados de outros tempos. Andando devagar e por terra vejo elefantes, zebras, girafas, babuínos e muitos javalis africanos, também conhecidos por “Pumbas”, animal imortalizado no Rei Leão. Sorrio. Hakuna Matata, sem problemas.
Com o tamanho do Reino Unido e uma população de 46 milhões de pessoas, o Uganda tem das populações mais jovens do planeta – metade dessa população tem menos de 15 anos de idade. Com tantos lagos, zonas pantanosas e florestas tropicais, cruzando a linha do Equador, a malária, o ébola, e o dengue, têm ambiente fértil e a temperatura ideal para se desenvolver, perdurar e matar. O zica, veja-se, tem o nome de uma floresta do sul do país, por ter sido aí que foi gerado. A ausência de cuidados de saúde primários, 1,5 milhões de infetados com HIV, uma geração que nos anos 70 foi executada ou ficou “desaparecida” às mãos de Idi Amin – o Carniceiro do Uganda
– e pode-se compreender porque é que o Uganda tão jovem.
Voltámos a estrada de alcatrão. Estou há uma semana com o Hannington, que me pergunta (em inglês) – `Como é o teu país, a tua cidade ? É como o Uganda, parecido ao que tens visto? `
Hesito. Não quero parecer ofensivo. Como explicar-lhe que em Portugal há passeios em vez de terra e lama, que há semáforos em vez de buzinadelas e guinadas de ultima hora? Como explicar- lhe que há apartamentos em vez de barracos? Que temos esplanadas e que somos menos, muitos menos? Que se recolhe o lixo em vez de se amontoar todo o plástico recolhido, fazendo uma queimada? Que cada casa tem a sua casa de banho, muitas vezes mais do que uma? Como explicar ao meu novo amigo que por mais quilómetros que façamos juntos por este país, ainda me emociono com os milhares de crianças que vejo caminhar com garrafões de água nas mãos, na cabeça, nas costas, com outras tantas crianças ao lado, com outros tantos garrafões de água, empurrando bicicletas nas subidas mais ingremes repletas de fardos de palha, ora indo, ora vindo de um poço? Como dizer-lhe que de noite, há luz nas vilas, nas cidades, junto às casas.
Respondo-lhe o que sinto. Que não, que não é parecido. Em Portugal temos passeios, temos esplanadas, temos prédios. As nossas crianças vão à escola, onde aprendem Matemática, Línguas
portuguesa e outras estrangeiras, Informática, Geografia, Filosofia e História. A mesma História em que a vossa subjugação durante séculos é considerada a nossa glória. O acesso à saúde é tendencialmente gratuito e por isso é comum vermos muitos idosos. Digo-lhe que as nossas crianças não têm que andar uma hora a pé acompanhadas de outras dezenas de crianças, para encher de água um garrafão, regressando após, por mais uma hora, todos os dias, todas as semanas, todos os anos até que, adolescentes, terão o primeiro emprego e em que outras crianças passarão a fazer tal tarefa.
Sublinho, no entanto, que isso não nos faz ser melhores. Que as condições sanitárias, de higiene e de saúde, permitem de facto às crianças terem uma infância inocente e aos idosos uma velhice digna, mas que esse conforto, também nos atirou a todos – ocidentais – para a solidão das nossas casas e dos nossos sofás. Não minto quando lhe digo que estamos aparentemente melhor mas mais fechados no casulo da nossa existência. Que nos esquecemos um dos outros, nos esquecemos de como se conversa e nos esquecemos do que é fazer parte da comunidade. Que rimos por Whatsapp e choramos pela Netflix. Concluo que perante estas diferenças, há um longo caminho para a frente que o Uganda terá que realizar, mas que Portugal tem um longo caminho de regresso por fazer. Tem que recuar, pousar a tecnologia, respirar, lembrar-se mais do outro e das mais básicas emoções humanas – empatia, tolerância, respeito.
O Hannington assente. Parece-me que concordou. Diz-me:` Gostava muito de ir à Europa.`
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A principal experiência turista do Uganda é a visita aos Gorilas da Montanha. Esta espécie de Primatas é uma das espécies animais em maior risco de extinção no planeta. Estima-se que exista um milhar em todo o mundo e que metade esteja aqui, no Uganda. Na primeira década do Século XXI, os gorilas da Montanha do Uganda foram sendo cada vez mais ameaçados. Os predadores humanos – caçadores furtivos ou guardas governamentais corrompidos – seduzidos pelos dólares madeireiros ou carvoeiros que pretendiam o derrube das árvores, foram assassinado os primatas. Estas empresas, após garantirem concessões governamentais para explorar os seus negócios próximo, ou no interior da Floresta Impenetrável do Bwindi do Uganda, tentaram maximizar o escoamento da sua produção. Para o conseguir, pretendiam estradas que passassem pelo meio dessa floresta, poupando-lhes horas, combustível e todo o tipo de custos acrescidos. A melhor forma era eliminar a única razão que impedia que se destruísse parte da floresta, ou seja, os gorilas da montanha. Acresce que existia também um forte mercado privado ilegal para a caça de animais selvagens. A pele, os dentes ou a cabeça de um gorila podiam valer dezenas de milhares de euros no mercado negro. Um animal vivo podia chegar às centenas de milhares de euros.
Hoje, num esforço do Governo do Uganda, há cerca de 500 gorilas de Montanha na Floresta Impenetrável do Bwindi. Numa estratégia turística com claros resultados as licenças de visita foram encarecidas, reforçou-se o policiamento e envolveram-se as populações que vivem no interior e nos limites da floresta. Hoje, os batedores dos Gorilas de Montanha, os guardas florestais, os guias, os empregados dos singelos hotéis da floresta, os carregadores de bagagem de turistas mais cansados ou em pior forma, os vendedores de bens e serviços, vêm diretamente dessas comunidades. Desta forma, a protecção dos Gorilas passou a ser comunitária. A preservação do habitat dos primatas é também a preservação de empregos e de uma economia local. Um sistema económico de primatas, penso.
Somos guiados por um Ranger – o Charles – que de galochas, camuflado e catana nos explica: “As pessoas dizem que evoluímos desde os macacos, dos gorilas…não é verdade. Provimos todos de um antepassado comum já extinto. Darwin dava um exemplo. Tentem imaginar uma árvore – diz. Esse antepassado comum é como que um ramo longo e forte, de onde por sua vez crescem pequenos galhos. Um galho são os orangotangos, outro galho são os chimpanzés, outro galho somos nós os humanos e, por fim, outro galho são os gorilas. Partilhamos cerca de 99% do seu ADN. Até o polegar oponível partilhamos. A grande diferença é que eles são vegetarianos” – ri- se.
São 8h da manhã e tinha chovido toda a noite. O chão estava enlameado e fomos informados que iriamos cair várias vezes. Iria acontecer. O importante era não nos magoarmos. A busca ia ser longa. A Floresta Impenetrável do Bwindi é três vezes do tamanho de Lisboa. Daí que ajuda dos batedores locais se mostre essencial. São eles que horas antes de começarmos a nossa caminhada partem em busca de reconhecimento de vestígios – fezes, galhos partidos pela passagem da família, restos de vegetação comida. Têm a experiencia suficiente para não confundir tais vestígios com vestígios similares de elefantes da floresta.
A vegetação na floresta é tao densa que a luz do sol não penetra totalmente em todas as áreas. A floresta é gigante, verde, poética. É arrebatador caminhar alguns quilómetros na escuridão, em pleno dia, com pequenos raios de sol que conseguem, em esforço, esquivar-se das árvores. Chegando a um ponto mais alto da floresta, olho em volta. São 360 graus de infinito de selva, delineada pelo azul do céu. A transpiração atinge níveis imensos, bem como a ingestão de agua. Depois de quatro horas a caminhar, o Charles diz-nos subitamente para colocar as máscaras. O equivalente a excelentes noticias já que as doenças respiratórias passam-se de primata para primata. Os gorilas estão aqui em baixo, sorri. Apesar de fazer este percurso diariamente, não consegue disfarçar a excitação nem o seu amor pelos primatas. Durante uma hora não podem comer e beber. Desfrutem.
Ainda hoje me arrepio com a experiencia de assistir, a escassos metros, à rotina da família de gorilas da montanha de dezanove elementos. A semelhança física, a cara negra como café, o olhar similar e pensativo, o modo como seguram nos objetos e como emitem ruídos de prazer quando comem centenas de folhas, a forma como os filhos seguem os pais com um olhar inseguro, rebolando, subindo árvores, brincando, caindo, empurrando-se mutuamente, ficará para sempre gravada na minha memória. Relembro a Origem das Espécies, de Darwin e de como nesta era de desinformação pode ainda haver discordância face a essa teoria cientifica.
Será intrusiva esta visita, penso mais tarde?
Se por um lado não houve qualquer contacto verbal ou físico com os gorilas da montanha, a verdade é que participei, de muito próximo, por uma hora, na sua rotina. Sucede que também é esta forma de turismo que permite criar todas as condições para preservar aquela floresta e aqueles gorilas, não só através de verbas directas como com toda a participação da comunidade local. O número de gorilas desde que este método turístico foi criado tem aumentado gradualmente. Considerando o escasso número de pessoas que os visitam por dia – o grupo em que participei tinha cinco turistas – e a forma como essa visita é feita, direi que é um critério sustentável e que beneficiará mais essa espécie do que possa prejudicar. Considerando o tamanho da floresta e o seu estado primitivo, belo e natural, penso que esta estratégia terá os seus benefícios. Na verdade, aquela família de gorilas da montanha pareceu-me bastante indiferente à nossa presença. Nem afectada, nem impressionada. As famílias de gorilas da montanha visitáveis vão sendo habituadas à presença humana, primeiro para fins científicos e após para fins turísticos, ao ponto de lhe sermos indiferentes. Longe vão os tempos em que os visitantes humanos pretendiam apenas um troféu ou uma execução sumária em prol de estradas para passagem de madeira ou carvão.
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A Kristin tem 25 anos, vive em Bigodi, uma aldeia no oeste do Uganda, junto à floresta Nacional de Kibale. Organiza passeios pelo pântano que circunda a sua comunidade, encontrando, entre os folhos das árvores, todo o tipo de babuínos e de pássaros, dos quais se destaca o Turaco Azul Gigante ou o macaco do Colobo Branco. A camuflagem dos animais já não engana a Kristin que treinou os seus olhos e consegue descortinar os animais mais pequenos, independemente do seu esconderijo.
´Estima-se que apenas 15% dos ugandeses tenham acesso a água potável, sabes? Que apenas 2 em cada 10 pessoas aceda diariamente a uma sanita ´, diz-me. ´Com o dinheiro obtido com estes passeios, tentamos melhorar isso. Tudo o que juntarmos vai directamente para a construção de um poço de água potável para a comunidade. Não só estamos a melhorar as nossas condições
de saúde, das nossas famílias e vizinhos, como estamos a retirar horas a todas as crianças e adolescentes que faltam à escola para recolher os seus garrafões de água diários. A construção de um poço pode permitir que uma criança não tenha que abandonar a escola, tal como eu me mantive a estudar e hoje aqui estou. O objetivo é aumentar as hipóteses aritméticas para as nossas crianças. De sobreviverem, de encontrarem um rumo.`
É difícil acreditar para um cérebro europeu que uma simples torneira comunitária possa fazer tanta diferença. Que possa ser sequer um objetivo. Ponho em perspetiva muitos dos meus aparentes problemas e penso em como poderia ajudar1. Em Portugal seria frustrante que a eletricidade ou a água falhassem e isso me impedisse ver um programa de televisão ou tomar um banho quente.
A noção de privilégio e de perspectiva fica absolutamente clara. É sobretudo isso que levo do Uganda.
A Kristin acrescenta:
´Depois do poço, o objectivo seguinte é que cada família possa ter uma rede mosquiteira em casa, à volta da cama. Prevenção para todas as doenças causadas pelas picadas dos mosquitos, percebes? ‘. Mais um incremento arimético nessas hipóteses de sobrevivência e de possibilidade encontrar um rumo, penso. Bravo, Kristin.
´Sabes Gonçalo, as pessoas têm uma má imagem do Uganda. Os nossos mosquitos são muitos e transportam tudo o que possas imaginar que possa matar. Temos um cocktail de doenças tropicais. Temos um presidente que não gosta de homossexuais e está cá há quarenta anos. A última vez que fomos falados no estrangeiro foi quando “ganhámos um Óscar” e foi por descrever um ditador que matou a geração dos meus pais. E ainda sim vieste. E ajudaste. Obrigado. Diz aos teus amigos que somos boa gente.`
Direi Kristin.
Fica prometido.
– Gonçalo Bruno Borges Rodrigues Mesquita de Carvalho
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