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Zinj, um destino com alma

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Nota prévia

Este artigo foi escrito por Maria João Roque e Castro, no âmbito do prémio Pepe Camara.

Há viagens que nos devolvem mais do que alguma vez imaginámos. E há lugares que visitamos pela primeira vez sentindo que lhe pertencemos, numa atmosfera familiar a abraçar-nos. Zanzibar foi (e é) assim: uma geografia que se revela a cada visita, mais de meia dúzia à data. Apesar do tempo contado, a cada regresso saboreio com plenitude uma nova descoberta, o prazer de uma amizade reforçada, o ambiente que me faz sentir em casa, a alma do lugar eleito. Na verdade, e para lá do postal turístico de ilha exótica e de vilegiatura, Unguja (nome da ilha em suaíli) magnetiza e envolve quem a ela se dedica, dando-se a conhecer com parcimónia, numa vivência autêntica e genuína. 

Poucos têm a noção de que a ilha integrou o império português durante quase duzentos anos (1503-1698) subsistindo até hoje vestígios dessa presença lusa e que inclui património material a imaterial, como a ascendência de vocabulário português no suaíli ou as touradas na ilha vizinha, Pemba. Mas as terra de Zinj são muito mais do que a sua história, definindo-se a partir de uma cultura híbrida resultante da mescla da identidade árabe, africana e europeia. 

Numa cartografia revisitada, a capital, A Cidade de Pedra – Stone Town –, desdobrase em heranças e influências que lhe devolvendo o ar do tempo. Sonorizada pela chamada para a oração que se desprende da torre altaneira, as ruas labirínticas desorientam os sentidos e serpenteiam edifícios decrépitos ou rejuvenescidos de aroma a salitre. O dia aquece à medida que o sol atinge o seu zénite, refletindo-se nas paredes mudas que, níveas escondem quotidianos insondáveis. Paira um ligeiro aroma a incenso e ouve-se o gotejar de uma fonte, não muito distante. Um velho avô tenta correr atrás da juventude do neto mas a idade e as maleitas do corpo arrastam-lhes os passos vagarosos e desarticulados. Uma mulher suaíli sentada na sua baraza embala o filho, cantando baixinho uma melodia sonolenta. Um par de jovens veladas pela religião cruzam o passeio e entram numa casa de paredes cegas onde se empoleiram janelas envergonhadas. As portas, trabalhadas segundo as mãos sábias de antigamente, escondem sortilégios de um mundo vago e dissimulado pela canícula. Entalhadas de forma exclusiva e ornamentadas com detalhes em latão, apresentam decorações marinhas, florais, geométricas ou com versículos do Corão, definindo uma arquitetura única. 

O sol desce preguiçoso, enterrando-se numa bola grande e dourada sob o horizonte límpido. A cúpula de um templo hindu, rematada por um colorido florescente, destacase no casario baixo, convivendo paredes-meias com as mesquitas e as igrejas. Algumas habitações vivem na inércia do abandono que há muito as reclamou, mostrando através das janelas empoeiradas, interiores vazios e desamparados; outras exibem-se num restauro recente, empertigadas e orgulhosas ao olhar alheio. 

Pouco a pouco, o céu africano veste-se de um crepúsculo que invade o recosto acolchoado, convidando a deixar-se reclinar. A cortina adeja à brisa da tarde e, lá fora, as lanternas dançam ao sopro da noite, à medida que o rumor do oceano é a música que acompanha a refeição de aroma a cravinho. 

O silêncio é entrecortado pelo murmúrio do Índico a sussurra notas de embalar mas também pode ser o lamurio de quem está prestes a partir. O céu tremeluz de estrelas, qual véu de tule pontilhado a diamantes, uma toalha de astros cintilantes que alonga recordações que nem sempre aconteceram. Nenhuma dúvida essencial é esclarecida. Nada se fica a saber de fundamental e contudo, quanta quietude na contemplação desta cúpula gigante, velando sobre um mar de especiarias. A mudez das sombras agigantam-se nas paredes circundantes e o cansaço de um dia cheio reclama o seu preço.

O som do muezzim faz despertar do sonho. O grande astro, sanguíneo, inunda o horizonte e rompe pelas frestas da gelosia. A bad-i-saba – brisa sagrada da manhã – traz recordações vadias. O movimento indolente da maré faz crer que amanhece mais um dia único, talvez porque aqui se sente que é possível, mesmo em plena era do digital, encontrar um poiso especial e deixar-se ficar, saboreando as coisas simples da vida. 

Passeio uma derradeira vez por uma Stone Town ainda adormecida. Percorro as moradas dos amigos para o abraço da despedida. Demoro-me frente ao oceano. Uma aragem cálida abraça-me e retenho o fotograma de um quadro que a memória guardará. O ferry apita, é tempo de partida.

Consumida pelo tempo e pelo vento, Unguja é feita de pedras que falam a quem estiver disposto a ouvi-las, devendo todo o seu encanto ao abandono e ao esquecimento. Por entre o denso véu do tempo que tudo encobre e tudo (dis)mistifica, o império de Zinj tornou-se num repositório de narrativas fabulosas, herdeira de epopeias e extravagâncias baseadas numa herança afro-luso-árabe onde se reuniu, de forma ímpar, conquistadores, exploradores, missionários e colonos que, por entre haréns e sultões, vivenciaram miríades de contos que se afloram aos devaneios da monção num (de)encanto perpétuo… 

À medida que me afasto, Zanzibar vai diminuindo de tamanho até se tornar num ponto minúsculo que não tarda a desaparecer. E é então que me dou conta de qual a sensação de partir para o exílio… É que não se regressa indemne desta jornada mas talvez a escrita permita deixar um rasto da viagem que perpetue os passos no caminho, e isso será a prova, de que nem tudo se perderá na desmemória do tempo…

Kwa heri – que é como quem diz, Adeus, até um novo regresso à ilha do meu contentamento, à terra onde me sinto em casa e onde a cada retorno, um novo propósito se revela. São assim as viagens que enchem a alma, qual carimbo de maresia a colar-se à pele numa tatuagem para a vida. Na verdade, se cada um de nós olhar para trás na sua história, seguindo a via do entendimento da memória, perceberá certamente que em dados momentos das nossas vidas apressadas existiram lugares tutelares que determinaram as pessoas que somos no aqui e agora perdurando para além de nós. E, porque tantas vezes nos afastamos e partimos sem devolver a esses locais algo que retribua a importância com que nos tocaram ou o significado que tiveram, decidiu espalhar um punhado de letras sobre a folha em branco que, à laia de um poema (in)fiel do planisfério pessoal ou ode demiúrgica de quem perde o caminho para casa, se espera que permaneça para além das distâncias e das deslembranças… 


– Maria João Roque e Castro

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