Nota prévia
Este artigo foi escrito por João Vasco Paulo Gomes, no âmbito do prémio Pepe Camara.
Há uma vara vertical que se reflecte no rectrovisor esquerdo. Conduzo, há já algum tempo, distraído, perdido em pensamentos. Talvez por isso, não me apercebo imediatamente do quão surreal é a imagem de alguém que segura uma longa vara na vertical ao mesmo tempo que conduz uma mota, no meio das múltiplas faixas duma avenida repleta de veículos, a maioria deles também pequenas motas.
Estou focado na tarefa que tenho, literalmente, em mãos: uma pequena mota que aluguei ao início do dia em Hué, no Vietname. O sol vai descendo ao final da tarde. Há já quinze minutos que atravesso a longa avenida em frente ao mar, em Da Nang. Conduzo com um grupo de viajantes que se fora formando durante o caminho. Tinha um lugar reservado num autocarro que, esta manhã, faria a viagem directa de Hué para Hoi An. Mas, duas horas antes da partida, enquanto tomava o pequeno-almoço, decidi antes fazer a viagem de mota. O meu plano era fazê-la sozinho através da Hai Van pass (mar de nuvens brancas, numa tradução livre), tornada famosa pela estrada serpenteante junto ao mar, mas sobretudo por ter sido palco de um dos episódios do programa de televisão britânico “Top Gear”. Nenhum destes argumentos, no entanto, me entusiasmava particularmente. Tinha passado apenas uma semana, desde que tinha, durante três dias, viajado de mota em grupo, no norte do Vietname, em Ha Giang, passando por algumas das mais incríveis paisagens que já vi. A paisagem não era, por isso, o que me tinha trazido, naquele final de tarde, àquela avenida de Da Nang. E um programa pop britânico também não seria razão que baste para me convencer a alterar os planos à última hora. Procurava, antes, a oportunidade de viajar de mota, desta vez, sozinho, devagar, e com liberdade para definir — e redefinir múltiplas vezes, se assim o quisesse — o itinerário até Hoi An.
Contudo, como é comum dizer-se, numa viagem a solo, por vezes, o mais difícil pode mesmo ser estar sozinho. Acabei por deixar o hostel juntamente com dois outros viajantes que iriam fazer o mesmo percurso. Após a primeira paragem, quase sem perceber bem como, tínhamo-nos tornado num grupo de dez pessoas. Conciliar as vontades e necessidades de dez pessoas num único grupo que viaja de mota pode tornar decisões simples — como onde parar para almoçar — em desafios de difícil superação. Não foi, por isso, uma grande surpresa que, ao início da tarde, estivéssemos ainda longe do meio do percurso. E, assim, dei comigo a viajar com uma rapidez que não me apetecia, imposta pela urgência de chegar ao destino antes do anoitecer. A cada paragem, a cada indecisão, a urgência da chegada aumentava.
No meio de tanta celeridade, e com tão pouco espaço para usufruir do privilégio que era estar ali, não pude deixar de pensar que não tenho tempo para ir tão depressa. Não tenho tempo para viajar tão rápido. A viagem que tinha iniciado há algumas semanas passava já demasiado rápido, quase como à semelhança da vida que, se não a agarramos, nos foge a uma velocidade que acaba sempre por nos surpreender. À medida que envelheço, sobra-me menos tempo para fazer e ver tudo o que quero — e o que ainda não sei que vou querer. Quando viajo rápido, deixo lugares por ver, coisas por fazer, e vida por viver, sendo que, a cada dia que passa, me sobra menos tempo para que ainda o venha a fazer. Viajar rápido é, por isso, uma opção para a qual talvez tenha cada vez menos tempo. No entanto, e apesar da frustração, percebo que viajar com liberdade é também ter o luxo de aceitar o que a viagem nos dá em detrimento daquilo que possam ser os nossos planos. Assim, aceito a rapidez da viagem neste grupo, saboreio o privilégio de atravessar uma avenida de Da Nang ao final de uma tarde de sol, e regresso à tarefa em mãos.
Olho, de novo, para o rectrovisor esquerdo. Desta vez, já focado no que vejo, torna-se difícil fugir à surpresa da imagem de uma vara que se ergue na vertical segurada por alguém que conduz uma mota. Olho com atenção redobrada. Há uma segunda vara mais atrás. Procuro, imediatamente, o rectrovisor direito onde se reflecte uma terceira vara vertical. Começo a dispersar a atenção entre o carrossel de semáforos, as múltiplas faixas que não conseguem conter a pressa de tanta gente, e as imagens nos rectrovisores. Que será isto? Um exército asiático em pequenas motos em hora de ponta? Nada disto parece fazer sentido. E, ainda assim, se houvesse um local, que não um filme de Quentin Tarantino, onde esta realidade não se encontrasse completamente deslocada, seria certamente uma estrada do Vietname. Estando há duas semanas a atravessar o país, não havia já muito que os vietnamitas pudessem transportar numa pequena mota que me pudesse surpreender. E, se no início, apenas via caos e anarquia, com o tempo, aprendi a apreciar a flexibilidade que a falta de organização e a flexão das regras permite. Uma espécie de desenrasque português elevado à milésima potência.
Nesse dia, ainda haveríamos de ficar perdidos dentro de Da Nang, no exacto momento em que centenas de milhares de vietnamitas se precipitavam para onde os esperavam, aos quatro em cada mota, quando a necessidade o impunha. Era um destino tão anunciado como a noite que já se formava lentamente: um grupo tão grande, em hora de ponta, numa cidade do Vietname, dificilmente conseguiria atravessar uma longa avenida sem se fragmentar. Acabaríamos separados da parte da frente do grupo onde um de nós tinha assumido a responsabilidade de navegar os restantes com a ajuda do GPS e do telefone. Sem um navegador, reuniríamos o que restava do grupo numa placa central de uma avenida, sem frustração, ansiedade, ou preocupação. Nesse momento, nenhum de nós se incomodaria pelo inesperado. Já todos sabíamos que, de uma ou outra forma, há sempre uma alternativa num Vietname que, não só não rejeita o caos, como o abraça e dele constrói um dia-a-dia onde parece não haver um problema para o qual não exista uma solução.
Chegaria, já de noite, a Hoi An, depois de atravessada a Ponte do Dragão e percorrida a longa estrada que liga Da Nang a Hoi An, junto à costa do Mar da China Meridional, repleta de resorts de luxo. Nunca, até então, uma Saigon gelada me tinha sabido tão bem.
P. S. – Não descansei até satisfazer a minha curiosidade infantil. Descobri, dias mais tarde, que a longa vara tinha um pequeno cesto de metal numa das extremidades. Tratava-se, na verdade, de um instrumento para apanhar moluscos no mar. A realidade, mesmo a do Vietname, fica sempre aquém dos filmes do Tarantino.
– João Vasco Paulo Gomes
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