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Uma mulher cega e uma miúda que aprendeu a ver

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Nota prévia

Este artigo foi escrito por Matilde Mota Manuel, no âmbito do prémio Pepe Camara, que acabou por vencer!

Se a vida é única, porque temos todos de a ver da mesma forma?

Senti, durante algum tempo, que a minha visão do mundo era diferente de quem me rodeava. Tentaram mostrar-me que apenas existia um único caminho possível para a felicidade – ir para a faculdade, casar, ter filhos e um emprego estável – mas nunca gostei de caminhar nas pegadas dos outros.

O sonho de fazer um gap year perseguiu-me, mesmo quando tentei silenciá-lo à força ele gritou mais alto que eu. Foram anos a construir e idealizar o momento em que partiria em viagem, a pensar no que levaria comigo, que parte do mundo iria visitar e ver pelos meus próprios olhos. Afinal, eu sempre quis poder ver o mundo todo.

Em outubro de 2022, entrei no avião que me levou ao Vietname, sozinha e apenas acompanhada de uma mala pequena, com o mínimo possível: algumas roupas, produtos essenciais, alguns medicamentos indispensáveis, umas recordações de quem deixava (temporariamente) para trás e um saco-cama que não sabia que não ia precisar. Assim iniciei uma jornada de sete meses no sudeste asiático, à boleia do mundo em busca de mim própria.

Cheguei a Laos no início de Dezembro, dois meses depois de ter deixado Lisboa. Fui lá parar depois de receber o “sim” de um projeto de voluntariado para cuidar de cavalos numa quinta no meio da natureza. Inicialmente comprometi-me a ficar três semanas, mas foi naquele lugar que pela primeira vez senti uma bonita sinfonia a tocar dentro de mim. Seguindo a promessa que fizera de deixar que o meu coração ditasse o rumo da viagem, tomei a decisão de prolongar a minha estadia até ao Natal, e depois até ao Ano Novo. Poucos dias antes do dia 25, alguém sugeriu planear uma doação de bens a famílias carenciadas. Ainda que esta iniciativa nada tivesse a ver com o meu trabalho até ali, um par de mãos extra seria essencial, e a missão ressoou comigo de tal forma que soube de imediato que queria contribuir.

Angariamos dinheiro através de crowdfunding e em pouco mais de uma semana reunimos umas centenas de euros, que aqui representam muito dinheiro. Falámos com a chefe da vila que disse para nos prepararmos para cerca de 70/80 pessoas, e assim o fizemos. Uns dias antes, começámos a organizar tudo e corremos todos os mercados de rua que conseguimos, escolhendo o que acreditávamos fazer mais falta à comunidade. Assisti ao regatear de preços mais violento de toda a minha vida. Queríamos fazer render o nosso dinheiro ao máximo e evitar preços inflacionados pelo tom claro da nossa pele, por isso, os locais que estavam connosco gritavam com quem estava a vender no mercado para que percebessem que se tratava de uma ação social, e que era altura de esquecer o poder de compra dos países de onde nós vínhamos. Depois de se chegar a um acordo entre as duas partes, tudo acalmava. Numa dessas vezes, uma das senhoras que vendia roupa levou-nos até ao sótão da sua própria casa depois de perceber que procurávamos de tudo um pouco, e iríamos levar mais do que aquilo que estava na banca dela.

Foram dias de correria para garantirmos que tudo iria funcionar e que esta missão seria um verdadeiro sucesso. A carrinha que nos levaria até ao local, já estava cheia até ao teto e já havia caixas espalhadas pelo chão nos bancos de trás. Estamos prontos para seguir caminho, em direção ao norte do Laos. Foram duas horas em estradas esburacadas e sinuosas, no meio das montanhas mais intocadas que já vi, até chegar ao local onde as pessoas ansiosamente nos esperavam.

Quando olhamos à nossa volta, ainda dentro da bolha que é a nossa carrinha, apercebemo-nos de que a estimativa que nos tinham dado de 80 pessoas não correspondia nem a metade das que estavam agora à nossa frente, e que deveríamos ter cerca de 150 pessoas, entre grávidas, velhos e crianças, com o olhar fixo em nós que nos aproximávamos. Não estamos preparados, mas saímos na mesma, todos com uma expressão apreensiva mascarada com um sorriso desconsolado.

O desespero, junto com alguma esperança de quem nos recebe, deram sinais assim que abrimos a porta da carrinha. Primeiro silenciosos, calmos, depois exaltados, com braços estendidos e corpos que se empurravam para chegar primeiro, as pessoas imploravam por bens de necessidade primária.

De nada valeu a organização que trazíamos nas nossas cabeças para fazer a entrega de bens funcionar, o caos instalou-se fintando todas as nossas tentativas. Os cobertores, brinquedos, camisolas, produtos de higiene e snacks desapareceram em menos de nada. Escaparam-se por entre as nossas mãos para as mãos de quem precisava. Mas todos precisavam, e não conseguimos tocar as mãos de todos, só de alguns.

Para quem vem daquilo a que se chamam “países desenvolvidos”, onde não falta nem o gadget mais inútil no dia a dia, este cenário é um choque de realidade. Uma realidade crua e dura, que podia muito bem ser a minha, se tivesse nascido meio globo para o lado direito ou meio globo para o lado esquerdo. Gostava de acreditar que estávamos dentro de um daqueles filmes em que no final surge milagrosamente uma solução e tudo se resolve, mas o calor humano que aqui se faz sentir e as vozes das pessoas nos meus ouvidos, provam-me que isto é real. Então qual é o propósito da nossa vinda, se não podemos chegar a todos?

Enquanto me debato interiormente com estas questões morais e de incompreensão por este mundo, a Mia, uma mulher alemã que por também estar a fazer voluntariado na quinta se juntou a nós, chama-me.

“Matilde, restou-nos algum cobertor?”

A Mia sabia que não, mas precisava de confirmar com alguém.

“Infelizmente não, demos tudo o que trouxemos”

E o olhar dela, que estava vidrado no meu com uma réstia de esperança que eu dissesse que sim, perdeu-se no chão e depois virou-se para trás, para o horizonte, como se estivesse a questionar o universo se podia fazer aparecer algum magicamente.

“Cruzei-me com uma senhora ali ao fundo, que por ser cega não conseguiu chegar até nós. Ninguém lhe trouxe nada, nem a guiou até onde precisava de estar. Alguém me traduziu que precisa de um cobertor porque faz muito frio onde dorme.” – acrescentou a Mia.

Raios! Num microssegundo passam-me todas as asneiras pela cabeça e invadem-me uma raiva e um sentimento de injustiça tão grandes que sustenho as lágrimas na garganta para que não escorram pela cara abaixo. Quantos cobertores tenho em minha casa, arrumados debaixo do sommier ou na arrecadação, que aqui fariam tanta falta? Demasiados.

Não há solução, não posso tricotar um cobertor, não tenho os materiais nem o conhecimento para o fazer, nem posso cá voltar, sei que não voltaremos. E no meio do turbilhão de possíveis soluções que cruzam a minha cabeça à velocidade da luz, ocorre-me algo. No dia anterior a arrumarmos tudo na carrinha, decidi que o saco de cama que tinha trazido para esta viagem estava a ocupar muito espaço na minha mala e que não me estava a ser útil de todo, por isso coloquei-o no banco de trás e disse que seria entregue a quem realmente dele precisasse. Com toda a euforia de tirar as caixas e caixotes da bagageira, o saco ficou esquecido no banco, e as escassas horas de sono da noite anterior fizeram-me esquecer que o tinha trazido.

Pedi à Mia que esperasse por mim onde estava, corri para a carrinha para encontrar o saco de cama. Está trancada e o motorista não está por perto. Mas não há tempo a perder, esgueiro-me para dentro do carro pela janela que deixei aberta, e depois de algum esforço, agarro-o. Já o tenho e corro de volta para a Mia e a senhora cega. A Mia leva-me até à senhora e eu mesma entrego-lhe o cobertor. Ela passa a mão na minha cara para me ver e esboça um sorriso honesto. Alguém me traduz o que está a tentar dizer em laosiano:

“És tão bonita. Obrigada!”

E a beleza, que nunca coube nas minhas feições ou no meu aspeto, transbordou nesta ação, neste momento.

No regresso para a quinta, com o vento a bater-me na cara e as montanhas a encherem o meu olhar de um verde vivo, soube que não vim aqui parar por acaso, que me trouxe aqui algo maior que eu, e que eu vim com um propósito, mesmo que não o soubesse, de levar um bocadinho meu a alguém que, de alguma forma, me esperava. Há sempre um propósito em cada viagem que fazemos, ainda que os olhos nem sempre o consigam ver.


– Matilde Mota Manuel

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